PFC Crônicas 4 – G.R.E.S – Unidos do vai correr pra quanto?
Por Ana Carol Sommer
Leitura de 5 minutos
O carnaval já passou. Fato. Mas no Brasil, toda hora é hora e nada como uma crônica em forma de micareta para falar sobre um assunto muito importante: a comunidade de corredores.
Sim, correr é um esporte individual e muitas vezes solitário. Ainda assim, puxei aqui na memória quantos amigos fiz ao longo dos anos e tudo porque em algum momento, alguém me perguntou: E aí? Vai correr pra quanto?
Hoje eu quero contar a história da minha primeira “agremiação” e como foi importante para criar laços de amizade verdadeira e dar mais sentido a essa mania de seguir correndo.
Alô, Comunidade! A hora é essa!
Pensar numa escola de samba como analogia para esse nosso bate-papo foi inevitável. Afinal, estamos sempre desfilando por aí, seja nos treinos ou nas provas alvos, transbordando alegria, no ritmo do sangue, suor e lágrimas.
Existem muitas semelhanças entre as escolas de samba e diversos grupos de corrida ou assessorias esportivas. Pode ser uma formação que acontece por simples afinidade ou com objetivos de performance. Todos atravessam as mesmas avenidas, com suas camisetas e tênis coloridos, em alguns casos até mesmo fantasiados. Num mesmo desfile temos vários enredos na forma de distâncias. Alas são determinadas pelo ritmo desejado para completar a prova.
Em algum momento, você encontra a sua comunidade e isso fará muita diferença na sua longevidade na prática da corrida. Pois bem, minha primeira experiencia identitária com um grupo de corrida tinha que ser no tema da capital ecológica. Curitiba é conhecida internacionalmente por seu sistema de transporte público e pioneirismo com a criação de vias exclusivas para os famosos ônibus expresso.
Abre alas nas canaletas
A equipe Os Canaletas surgiu na academia Hype, de forma espontânea e mais pelo prazer que correr junto trazia a cada um que resolvia dar um rolê justamente nas vias estruturais da cidade. Era uma vibe bem família, com diversidade de idades e experiencias na corrida. Todas as 3as e 5as à noite, um grupinho se formava em frente à academia para os treinos. Nos finais de semana, também tinha encontro. Às vezes para irmos juntos a alguma prova ou simplesmente embarcar naquele sobe e desce maroto pelas ruas de Curitiba.
Não demorou muito e já estávamos nos organizando por conta própria para termos nosso próprio “abadá”, com logotipo e tudo mais. A cor não poderia ser outra: vermelho Ferrari como a cor dos biarticulados. Com o tempo, começamos a nos chamar de ligeirinhos e ligeirinhas. Estávamos sempre batendo ponto nas provas de 10k, meias ou maratonas. O circuito de corridas da Prefeitura sempre no calendário.
Agora a grande festa mesmo acontecia nos revezamentos. Na minha opinião, a maior prova de parceria e amor à corrida. Esse “desfile” era longo, exigindo planejamento e organização, coisa séria, ainda que o maior objetivo fosse se divertir em equipe.
Enredo – Das nascentes do Iguaçu à Santa Felicidade
A principal prova de revezamento na região metropolitana de Curitiba é o Revezamento das Nascentes do Iguaçu. Passando por nove municípios, os corredores percorrem 103k em estradas vicinais, de chão batido, imersos na natureza e numa paisagem campestre e exuberante.
A preparação coletiva era importante. A gente decidia de comum acordo quem pegaria os trechos mais difíceis ou mais fáceis, quem começaria, quem terminaria, quem faria mais de um trecho. Cada um, dentro das suas capacidades, se comprometia a entregar o seu melhor no seu trecho. Tem de gostar muito de correr, mas principalmente dos colegas de equipe para passar o dia numa van, fazendo apoio logístico e moral, debaixo de sol ou de chuva.
Mas voltando à nossa analogia do dia, lembrem que escolas de samba entram na passarela para ganhar. Nesse grupo privilegiado, tínhamos equipes femininas, masculinas e mistas. Algumas equipes eram montadas quase que exclusivamente com os corredores amadores mais fortes do nosso circuito local, rivais de peso. Não havia prêmio em dinheiro, era aquela vitória moral que fazia valer a pena sonhar com a conquista da bacia hidrográfica.
Numa das edições dessa prova, as Ligeirinhas resolveram que dava para ir buscar, pois também tinham a competitividade no sangue. Era como naquela expressão popular: 99% de esforço onde houver 1% de chance. E assim nos preparamos, aproveitando o sobe e desce natural dos bairros de Curitiba para trabalhar as pernas, mas também nossa união nos treinos coletivos.
Evolução
Quem diz revezamento de 103k em pleno domingo, diz começar o dia antes das 5 da manhã. Rumo à Piraquara para a largada, já começávamos a compartilhar os comes e bebes como se fosse uma espécie de festa americana. Tinha de tudo um pouco, mas café era essencial. Muita animação, música e piadas com relação ao “Bastião”, apelido que demos ao bastão que deveria ser passado em cada troca de corredor.
Optamos por começar com uma corredora forte, para abrir o máximo de vantagem possível. Antes da largada, parece que vem sempre o peso invisível da responsabilidade individual no resultado coletivo. Mas estávamos lá para fazer nosso melhor, suar o top, dar risada e sofrer um pouquinho também. O que acontecia na van, ficava na van. A sequência de corredoras estava definida e sempre dava aquele friozinho na barriga.
Harmonia
O desenrolar do enredo era cheio de emoção. Havia momentos de tensão para passar uma equipe rival, mas de descontração também aguardando o revezamento nos postos de troca. Monitorávamos nossa progressão, mas também a das concorrentes. Queríamos ter certeza de que as regras do fair play estavam sendo seguidas, afinal nada impedia que uma equipe trapaceasse, se quisesse.
Cada uma tinha seu ritual antes de largar. Algumas ficavam mais introspectivas. Outras revisavam as previsões de ritmo segundo a distância e altimetria. Também ficávamos atentas ao tráfego, para oferecer hidratação na hora certa ou confirmar que tudo estava indo de acordo com o previsto. Quando a van passava, era aquela farra de gente gritando para fora do vidro ou até descendo para correr alguns metros.
Se fosse para andar, a gente andava, e estava tudo certo. Quando o sol chegava com força, e as pirambeiras também, a cabeça tinha de estar no lugar. Quando você corre e sente que não está sozinha, a força vem de onde menos imaginamos.
Conjunto
Durante o trajeto, a gente parava também para apreciar a paisagem e tirar fotos, enquanto esperávamos que a corredora da vez passasse para a gente fazer aquela torcida animada. Correr fora da cidade permite momentos assim, contato com realidades menos comuns no nosso dia a dia. Parecia que a cada vez o percurso se transformava e a gente se admirava, principalmente, com as subidas desafiadoras do trajeto.
Nos postos de troca, os sentimentos misturados: adrenalina para quem estava pronta para largar e alívio de quem havia cumprido sua etapa com louvor. Para quem fazia trecho duplo, tempo de se recompor antes de recomeçar. E se no dia o plano precisasse mudar, a gente se adaptava. Disposição e solidariedade não faltavam jamais.
Todas estavam super focadas: em si mesmas, mas também umas nas outras. A energia era tanta que sobrava até para incentivar outras equipes de corredores que conhecíamos. Cara feia mesmo, só para quem parecia estar querendo criar algum tipo de vantagem duvidosa.
Apoteose
Depois de umas 7, 8 horas de entra e sai da van, acelera e descansa, a sensação é de entrar na reserva do tanque de combustível. É aquela impressão universal de fim que nunca acaba, que todo corredor já sentiu em algum momento. A fome também começa a apertar, afinal a gente passa o dia enganando o estômago. A notícia boa é que a linha de chegada era no bairro mais gastronômico da capital: Santa Felicidade. Isso significava que um banquete italiano nos aguardava.
Antes da gloria, tínhamos ainda algumas corredoras desbravando o agora asfalto na volta para Curitiba. Fato é que apesar de flertarmos de perto com a fadiga do dia agitado, nos quilômetros finais sempre sobrava um gás para acompanhar a última e chegarmos juntas. E naquele dia cada minuto valeu a pena porque conseguimos o 2º lugar dentre as equipes femininas.
Após tanto esforço, nada como dividir a mesa com muita massa, frango e polenta, relembrando os melhores momentos da façanha. A volta na van já era mais calma, até demais, sinal de que todas haviam deixado tudo que podiam pela região metropolitana. O que restava era fazer como os italianos: Dolce far niente sabor deu pódio. Conseguimos um ritmo, 10, nota 10!
Dispersão
Correr com os Canaletas sempre foi um prazer e uma alegria. Os encontros que aconteciam no início por conta de treinos, se transformaram tranquilamente em almoços, jantares, festas de aniversario, festa junina, amigo secreto de Natal. Casais se formaram e se desfizeram, crianças nasceram, adolescentes floresceram, pais e filhos também encontraram na corrida um lugar comum. Risos e lagrimas foram compartilhados, principalmente naqueles momentos de superação de perdas que muitos viveram.
A vida vai se transformando e com isso outras equipes de revezamento se formam. Alguns planos mudam porque desejamos, outros nos são impostos. Mas essas memórias do que vivemos entre amigos que correm, essas ficam e deixam uma saudade gostosa demais. Escrevendo essa crônica, revisitei vários momentos com os Canaletas. Espero que estejam todos bem, firmes, fortes e correndo por aį.
Concentração
A beleza dessas comunidades é que elas transcendem as fronteiras físicas. Com o Por Falar em Correr, temos a oportunidade de fortalecer vínculos com pessoas que compartilham do amor pela corrida. São histórias incríveis de corredores como eu e você, que talvez estejam geograficamente distantes, mas que se aproximam a cada vez que nos reunimos todas as semanas para trocar experiencias. Sem você, querido ouvinte e leitor, a graça não seria a mesma. Obrigada por nos acompanhar e apoiar!
O fato é que para onde quer que você vá, sempre haverá um grupo de corredores cruzando o seu caminho. Dispersões são necessárias para irmos em busca de novos desafios. Quando você menos espera, uma nova equipe lhe acolhe para novos enredos e desfiles pelas avenidas desse mundo afora.
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Olá! Que texto legal, nunca havia pensado em alguma relação entre corredores e escola de samba!!!
Por enquanto o PFC está sendo pra mim essa forma de interação, dou risadas, aprendo e me motivo com vocês. Eu ainda estou um pouco inibido de procurar assessoria e fico preocupado de me colocar em alguma forma de pressão, mas estou cada vez mais convencido de que deve ser bem interessante essa convivência com outros corredores.
Parabéns pelo trabalho de todos do PFC!!!
Olá Fabio! Primeiramente, obrigada pela leitura. Correr é um carnaval de certa forma, não é? Uma alegria, uma baguncinha boa, mas que também vem com competitividade para quem desejar. Como contei na minha historia, os Canaletas são um grupo de corrida apenas. Não era uma assessoria, então a gente simplesmente corria junto, formando subgrupos segundo o condicionamento de cada um. Era parceria mesmo. Numa assessoria esse clima também pode existir e a performance deve ser vista como um objetivo individual, não necessariamente de grupo. Mas entendo que por enquanto você prefere não ter a pressão nas costas. É super normal! Com o PFC criamos nossa comunidade virtual e o mais bacana é que um ajuda o outro de uma forma muito saudável. Continue correndo e nos ouvindo. Abraço carinhoso!
Ótimo texto. Parabéns!
Olá Guilherme! Obrigada pela leitura. A cada 15 dias, sempre sai algo novo. Vocês podem me propor temas também! Até a próxima leitura!